sábado, 23 de fevereiro de 2013

Sermão do Monte XXV: O crente e a oração (Mateus 6.5-6)

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Capítulo XXV

O crente e a oração

 

Alejandro G. Frank

Introdução

Há dois estudos atrás (Estudo 1; Estudo 2) começamos a tratar um dos princípios ensinados no Sermão do Monte, apresentado no verso 6.1: “Guardai-vos de exercer a vossa justiça diante dos homens, com o fim de serdes vistos por eles; doutra sorte, não tereis galardão junto de vosso Pai celeste” (Mateus 6.1). Vimos que esse princípio se desdobra, nos versos sucessivos, em diferentes aplicações práticas de como o crente deve praticar a verdadeira justiça na vida diária. No último estudo vimos uma delas: o problema das obras da caridade ser utilizadas pela falsa religiosidade como um meio para receber a glória dos homens ao invés desta ser usada como um meio de praticarmos a justiça diante de Deus.
No estudo de hoje trataremos um segundo ponto que discorre sobre a atitude do crente com a prática da justiça. Este segundo ponto também é uma exemplificação dada por Jesus a respeito do princípio geral do verso 6.1. No estudo anterior vimos que Jesus começou pela prática da justiça através dos aspectos materiais por ser um dos maiores meios que o ser humano utiliza para seu próprio benefício, isto é, para ser louvado pelos homens e alcançar o poder também no meio religioso. Agora o Senhor Jesus passa a tratar um segundo aspecto, igual ou até mais relevante do que o primeiro, na vida religiosa: a oração. Vejamos o que ele disse a respeito:
“E, quando orardes, não sereis como os hipócritas; porque gostam de orar em pé nas sinagogas e nos cantos das praças, para serem vistos dos homens. Em verdade vos digo que eles já receberam a recompensa. Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto e, fechada a porta, orarás a teu Pai, que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará. E, orando, não useis de vãs repetições, como os gentios; porque presumem que pelo seu muito falar serão ouvidos. Não vos assemelheis, pois, a eles; porque Deus, o vosso Pai, sabe o de que tendes necessidade, antes que lho peçais.” (Mateus 6.5-8)
O tema aqui tratado, a oração, foi e sempre será um grande problema na vida do homem. É um problema muito atual na Igreja. Talvez hoje não seja tanto o problema de orar da maneira errada, mas a falta de oração que a igreja evangélica moderna enfrenta. Os membros já não dão a importância que merece esta questão. Além disso, isto se agrava com a situação do contexto onde vivemos. Problemas como o déficit de atenção são característicos de nossos tempos e certamente afetam também à vida de oração. É difícil nos desconectarmos da mídia, internet, celular, televisão, computador, etc., etc. Já quase não há espaço para o exercício contemplativo por meio da oração. Portanto, temos um grande desafio para vencermos tais barreiras, uma vez que o Senhor Jesus apresenta aqui a oração como uma necessidade da vida do crente.
Por outro lado, este texto aborda também a profundeza do pecado do homem, pois mostra como ele nos acompanha até as portas do céu. Muitas vezes consideramos pecado apenas as forma de ações como “faço isto ou faço aquilo que não condiz com a conduta cristã”, mas o texto em consideração nos mostra que podemos estar pecando inclusive por meio dos instrumentos mais santos que Deus nos dá para adorá-lo. Como bem disse Lloyd-Jones, é nos homens santos e ajoelhados que vemos o alcance e a profundeza das tentações e do pecado na vida do homem, pois até na oração podemos ser tentados para utilizá-la para nossa própria glória. O pecado é um câncer, ele se espalha, ele tenta se infiltrar como o água que transborda e permeia qualquer fissura que encontra, ele é capaz de nos perseguir até a presença de Deus nas nossas orações, de maneira que tiremos toda a glória dEle e foquemos toda a atenção em nós mesmos. Por isso este aspecto é tão grave e tem tão severas advertências de Jesus. Observe a tamanha importância que Jesus dá a este aspecto, veja a extensão do assunto da oração (versos 5 a 14) se comparado com o assunto anterior das esmolas (versos 2 a 4), ou com o assunto posterior do jejum (versos 16 a 18). Somente na oração Jesus se deteve nos detalhes.
No decorrer deste capítulo veremos quais as advertências, quais os problemas das atitudes erradas diante da oração e qual é o ensinamento positivo para nossas vidas que o Senhor nos deixou nesta porção do Sermão do Monte.

A atitude dos hipócritas

Consideremos primeiro o aspecto negativo colocado pelo Senhor Jesus, quando ele confronta uma atitude errada em relação à oração:
“E, quando orardes, não sereis como os hipócritas; porque gostam de orar em pé nas sinagogas e nos cantos das praças, para serem vistos dos homens. Em verdade vos digo que eles já receberam a recompensa.” (Mateus 6.5).
Depois ele continua:
“E, orando, não useis de vãs repetições, como os gentios; porque presumem que pelo seu muito falar serão ouvidos.” (Mateus 6.7)
Notem que Jesus começa dizendo “quando orardes” (verso 5). Quando orardes, não sejas como eles, disse Ele. Ora isto significa que o confronto que encontramos neste texto não está dirigido à oração em si, mas à forma e atitude que temos no momento de orar. O fato de Jesus iniciar a sua advertência dizendo “quando orardes”, implica em que ele assume que seus discípulos oram como uma prática rotineira, contínua. O nosso Senhor foi um homem de profunda e constante oração. Lucas nos conta no seu evangelho (Lucas 18.1) que ele encorajou seus discípulos a “orar sempre e nunca esmorecer”. O apóstolo Paulo ainda reforçou também a necessidade da oração constante aos crentes em Tessalônica com as palavras: “orai sem cessar...” (1Tessalonicenses 5.17). A oração é uma marca do crente, pois é o canal de comunicação do cristão com seu Deus. É através da oração que chegamos diante do trono de Deus para buscarmos a sua graça, o seu perdão, a sua benevolência e as suas bençãos. Portanto, não temos desculpa para não orarmos. A Bíblia nos exorta a exercitarmos a oração e o próprio Senhor Jesus nos traz neste ensinamento importantes princípios para a vida de oração.
Como já dissemos anteriormente, o problema colocado aqui é a atitude que podemos tomar diante da prática da justiça por meio da oração. Neste sentido, duas atitudes erradas são destacadas por Jesus nos versos que lemos: a) a vanglória (verso 5); e b) as vãs repetições (verso 7). Vejamos esse dois aspectos a seguir.

a)  A vanglória na oração

O primeiro problema dos fariseus e escribas hipócritas é que eles amavam orar na sinagoga e em pé, para serem vistos por todos, como diz o verso 5. Além disso, outros textos dos evangelhos nos contam que já no caminho eles paravam nas esquinas públicas para orar a Deus com o intuito de serem vistos pelos homens. Eles amavam orar porque esta prática lhes permitia exibir-se diante dos homens. É interessante que os relatos bíblicos nunca apresentam os fariseus como homens ajoelhados e humilhados em oração. O que vemos nesses relatos são homens em pé e cheios de orgulho quando oravam. Vemos um claro contraste entre a atitude destes homens e os verdadeiros adoradores na parábola contada por Jesus em Lucas 18.9-14:
“Dois homens subiram ao templo com o propósito de orar: um, fariseu, e o outro, publicano. O fariseu, posto em pé, orava de si para si mesmo, desta forma: Ó Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros, nem ainda como este publicano; jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de tudo quanto ganho. O publicano, estando em pé, longe, não ousava nem ainda levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, sê propício a mim, pecador!” (Lucas 18.10-13)
O Senhor Jesus concluiu essa parábola dizendo que o publicano voltou justificado e não o fariseu. O fariseu estava cheio de orgulho, em pé, alçando os olhos a Deus, já o publicano nem ousava levantar o olhar. Não quero dizer com isto que sempre devemos orar ajoelhados, nem que sempre devemos orar com um espírito quebrantado. Acho bom sim, e acho que hoje em dia isto é uma das coisas que mais falta na vida dos crentes: uma verdadeira humilhação diante da face de Deus em oração. Porém, sei que muitas vezes podemos estar orando na igreja ou em casa, por exemplo, em pé, ou mesmo sentados. Também podemos estar orando com alegria, com gratidão. Isto também é necessário. O problema é que esses hipócritas não queriam se humilharem, eles achavam desnecessário. Eles acreditavam que a oração era um meio pelo qual eles aperfeiçoavam sua justiça e assim eles se tornavam merecedores da graça de Deus. Esta justiça própria era de tal importância para eles que a queriam exibir como um troféu diante da sociedade. Portanto, o ensinamento que encontramos aqui é que o mal está em orar para meu próprio interesse diante dos homens.
Agora, você como cristão pode pensar que isto é trivial, é muito claro que não se deve orar assim. Mas deixe-me lhe dizer que não necessariamente é algo muito visível. Há maneiras muito sutis de nos vangloriarmos por meio da oração. Considere, por exemplo, o tipo de crente que gosta ser conhecido como um homem ou mulher de oração na sua Igreja. Incialmente pode nos parecer uma atitude positiva e louvável tal característica da pessoa. Contudo, conforme o ensinamento que encontramos neste trecho do Sermão do Monte, não é este um tipo de característica que deveria ser muito patente aos olhos de terceiros. É algo que deveria ser apenas entre o Pai e você. Quando falo de pessoas de oração da igreja refiro-me àqueles que se fazem notar por meio de longas orações, talvez com intensas lágrimas. Certa vez conheci uma pessoa que sempre que orava em público chorava. As primeiras vezes parecia algo muito piedoso, mas lentamente, após tantas orações escutadas, comecei notar uma regra e ordem na estrutura da sua oração, e o choro chegava sempre no mesmo momento dessa sequência. Não sou ninguém para julgar se isso era genuíno ou não, mas tal atitude pode se tornar repreensível se for feita mecanicamente. Também há pessoas que gostam de falar reiteradas vezes de como elas têm vencido desafios e problemas mediante a oração. Se isto for como testemunho daquilo que Deus fez por na vida deles devemos nos alegrar juntamente com eles. Porém, refiro-me àqueles que, mediante esses testemunhos, ficam diante da Igreja como heróis da oração, como aqueles que são modelos de oradores para a igreja.
Há situações da vida muito mais sutis ainda. Por exemplo: o que pensamos sobre nós mesmos quando estamos sozinhos no quarto orando e outros estão fora sabendo disso? Falo àqueles que moram com outras pessoas, sejam os cônjuges, filhos, pais ou irmãos. Qual é o nosso sentimento diante deles no momento que estamos orando no nosso quarto. Será que não há em nós um desejo de que os outros saibam que estamos sendo piedosos na oração pessoal? Outro problema que vejo são aquelas pessoas que se orgulham pelo “tempo” que eles oram por dia. Será que a quantidade de tempo que oramos não poderia ser um motivo de orgulho também? Acredito que hoje em dia tenhamos mais problema com o pouco tempo de oração ao invés do que com o muito tempo, mas se você consegue ser uma pessoa disciplinada nesta área, qual é seu sentimento diante dos outros que são mais frágeis neste aspecto?
Permitam-me citar mais um exemplo: conheço outro tipo de problema com a vanglória na oração. Trata-se das pessoas que utilizam a oração pública para exercer influência sobre os ouvintes ao invés de focalizarem esse momento em Deus unicamente. São pessoas que quando oram parece que estão pregando aos ouvintes, não que estão orando elas mesmas a Deus. O problema tanto desta atitude como de todas as outras mencionadas é que quando oramos, toda a nossa atenção e interesse devem estar focados no receptor das nossas orações, isto é, em Deus o Pai. A oração, seja pública ou privada deve ser para glorificar a Deus e para nos humilharmos diante dEle. Qualquer outro foco nas pessoas do nosso lado, por mais bem intencionado que seja, perde o alvo do verdadeiro propósito da oração.
Diante destas colocações pode surgir uma dúvida com a qual eu mesmo me deparei algumas vezes. Vou lhes dar um exemplo bem prático. Algumas vezes quando eu ia almoçar no restaurante da universidade junto com colegas não cristãos ficava com uma dúvida: devo orar ou não na frente deles? Se eu orar, não estarei me vangloriando? Se eu não orar, não estarei me envergonhando? É o dilema vangloria versus vergonha. Posso ocultar um destas duas atitudes por trás de orar ou deixar de orar na frente desses colegas? Acredito que não haja uma resposta única para todas as pessoas. Temos que olhar o que temos em nosso interior. Posso lhes dizer que eu, particularmente, sempre optei por orar se o ambiente for propício para isso, pois conheço a minha fraqueza e sei que a minha maior tentação é em me envergonhar em orar diante desses colegas. Portanto, no meu caso, eu devo me esforçar para não cair no pecado da vergonha do evangelho. Mas se houver outra pessoa que se sentir orgulhosa por orar na frente de pessoas incrédulas, seria melhor enfrentar tal pecado sendo discreto na oração. É uma questão de contexto que demanda muito bom senso.

b) As vãs repetições na oração

Uma segunda atitude errada diante da oração é a que Jesus destaca no verso 7: as vãs repetições. Note que não se trata de qualquer tipo de repetição que é condenada. Por exemplo, o nosso Senhor orou no Getsemani antes da sua morte repetindo a mesma frase por três vezes. Vemos as orações dos salmistas que também em muitos casos são compostas por repetições de lamentos. Paulo fez três vezes a mesma petição ao Senhor, que lhe tirasse o espinho da sua carne. Então, não é qualquer tipo de repetições que trata este texto.
As vãs repetições neste texto referem-se a frases ensaiadas e decoradas. Algo similar ao que acontece no cristianismo de hoje quando ao invés da oração se fazem rezas, substituindo a comunicação com o Pai por frases decoradas. Mais adiante nesta série de estudos no Sermão do Monte veremos a oração modelo do Pai Nosso. Este é um típico caso que hoje se utiliza para rezar. Porém, esta oração tinha sido dada pelo Senhor Jesus como modelo, como instrumento de ensino e não como um fim em si mesmo. Uma característica impressionante dos salmos bíblicos, um livro repleto de orações, é a simplicidade da comunicação do salmista com seu Deus, de uma maneira natural e espontânea. Não quero dizer que é errado usar o Pai nosso ou algum salmo como a nossa oração, mas mesmo nesses casos devemos fazê-lo com uma profunda meditação daquilo que estamos orando, senão, corremos o risco de agirmos como esses hipócritas, que transformaram suas orações vãs repetições usadas para impressionar aos homens.
Além disso, existem outros tipos de vãs repetições mais sutis do que as rezas. Uma vã repetição pode ser uma falsa promessa que fazemos a Deus como condição para que algo aconteça. Refiro-me a essas promessas e penitências que as pessoas fazem para alcançar o favor de Deus. Já viram pessoas que prometem deixar algum vício ou que prometem caminhar de joelhos até um determinado lugar, ou coisas semelhantes, se Deus responder ao pedido delas? Isto é uma vã repetição, uma promessa a Deus sem sentido. Primeiro porque o abandono do pecado não deveria estar fundado em uma promessa nem menos ainda em um resultado esperado, mas no arrependimento. Além disso, é vã porque somos incapazes de cumprir qualquer coisa e Deus não precisa de condições. Ele não é homem para que nós o coloquemos condições nem é um ídolo pagão para que precise trocas de bênçãos por adoração.
Outra forma de vã repetição são as argumentações que utilizamos nas orações para convencê-lo dos nossos desejos. Deus não precisa de argumentos humanos, ele não é homem para ser convencido.  Tais orações são apenas vãs repetições. Há também “orações relatório” feitas a Deus que são vãs repetições. Falo daquelas pessoas que chegam a Deus com uma decisão já tomada e estão completamente decidas a cumpri-la. Parece inacreditável, mas já ouvi pessoas com esta atitude e certamente isto é uma vã repetição, pois Deus não é um súbdito que precisa saber o que faremos, somos nós que precisamos saber dEle o que fazer!
Uma última forma errada de oração pode ser as que são excessivamente longas. O problema não está no fato da oração ser longa, pois os evangelhos nos contam que o Senhor Jesus, em muitas ocasiões, orava a noite inteira. O problema deste tipo de orações está em querer manipular a Deus pela insistência e persistência. Sobre isto gostaria de me deter um pouco para meditarmos juntos. Vejamos o seguinte: há uma tendência no meio evangélico de ver a Deus como um servo que responde positivamente a qualquer coisa que peçamos. Basta insistir, persistir e ter muita fé. Quando algo não for atendido positivamente é porque faltou ter mais fé. Nestes casos a soberania de Deus é esquecida. Deus é tratado como um servo nosso que responde a qualquer demanda, em vez de ser considerado o todo soberano rei do universo ao qual chegamos implorando e suplicando seu favor. A respeito disto, há uma frase cliché que diz: “a oração muda as coisas” e que tem sido muito mal usada. Não é a oração que muda as coisas. É Deus que muda as coisas. Através da oração podemos apenas alcançar seu favor, mas, somente se assim aprouver a Ele. Eis aqui o ponto em questão: sempre é conforme a vontade dEle e não a nossa. É uma vã repetição ficar insistindo um pedido e crer que Deus tem que atender positivamente a tal pedido. Muitas vezes, ao invés de Deus mudar a situação que é o alvo do nosso pedido, Ele muda a nós mesmos para sermos capazes de suportar tal situação. Lembra a oração de Paulo? Em 2 Coríntios 12 ele nos conta que orou até três vezes pedindo a Deus que tirasse o espinho na carne. Qual foi a resposta de Deus? A resposta foi: “a minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza” (2 Coríntios 12.9). Deus disse não ao pedido de Paulo, a Sua graça era suficiente para Paulo e a fraqueza na vida de Paulo permitia que se manifestasse o poder de Deus que o sustentava. Lembre: Deus pode dizer não a um pedido nosso. Então, é melhor orar como Jesus: “Pai, se queres, passa de mim este cálice; contudo, não se faça a minha vontade, e sim a tua” (Lucas 22.42).
Todos os exemplos que coloquei acima são exemplos do que faziam os gentios da época de Jesus. É por isso que Ele disse: “não useis de vãs repetições, como os gentios; porque presumem que pelo seu muito falar serão ouvidos.” (Mateus 6.7). O Senhor Jesus está falando de gentios que eram pagãos e, como tais, adoravam a ídolos feitos pelas mãos humanas. Observem os deuses da mitologia grega ou romana. Esses deuses são imagens do homem. Eles eram semideuses. Na mitologia havia disputas, ciúmes e invejas entre os deuses como entre qualquer ser humano. Por serem semelhantes aos homens, seus adoradores agiam como quem tratasse com um ser humano, pois se preocupavam em repetir as súplicas, em argumentar e convencê-los. Lembre o exemplo bíblico de Elias contra os profetas de Baal (1 Reis 18). Enquanto Elias esperava o tempo certo para orar a Deus e receber uma resposta, os profetas de Baal gritavam para serem ouvidos por seu ídolo e faziam sacrifícios, esforçando-se com vãs repetições para serem atendidos por ele.

O ensinamento de Jesus para a vida de oração

A mensagem do Evangelho significa boas novas, boas notícias para o homem perdido. Por conseguinte, nenhum ensinamento bíblico foca apenas no aspecto negativo. A Palavra de Deus é instrutiva para nossa vida, de maneira positiva. Ela nos adverte, mas também nos instrui. Este caso não é a exceção. Jesus advertiu e logo ensinou a forma correta de procedermos na oração. Ele passa a instruir como se deve agir quando formos orar:
“Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto e, fechada a porta, orarás a teu Pai, que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará. [...] Não vos assemelheis, pois, a eles; porque Deus, o vosso Pai, sabe o de que tendes necessidade, antes que lho peçais.” (Mateus 6.6,8)
Poderíamos dividir esta instrução nas seguintes etapas que veremos a seguir: a) o processo de exclusão; b) a percepção; e c) a confiança.

a) O processo de exclusão

Observem que a instrução para orarmos começa com uma exclusão, um afastamento de todas as coisas e de todas as pessoas para estarmos sós com Deus. Lemos em Gêneses 24.2 que Isaque se retirava a meditar ao campo; Mateus 14.22-23 nos mostra ao Senhor Jesus se afastando das multidões para orar sozinho; em Atos 10.9 lemos que Pedro também se retirou ao telhado para orar. Temos muitos exemplos bíblicos onde os servos de Deus buscavam comunhão com Ele a sós. A exclusão é essencial para uma vida de oração.
Nesses momentos a sós com Deus precisamos esquecer tudo o que está ao nosso redor. Precisamos “desligar-nos” do que acontece e de coisas que podem nos interromper. Não interprete isto como o tipo de meditação hindu, onde a pessoa tem que chegar a um estado de inconsciência. Muito pelo contrário, nesse momento precisamos ter consciência absoluta daquilo que estamos fazendo e dizendo, pois estamos em um momento de intimidade com Deus. Também não significa que vamos esquecer nossos problemas, pois muitas vezes é através da oração que trazemos diante de Deus esses problemas para suplicar a ajuda divina. O que estou dizendo é que este é o momento de exclusividade de Deus. Significa que as coisas vãs desta vida se tornam secundárias e somente vem a  toa quando queremos trazê-las em oração como pedidos ou agradecimentos a Deus. No momento de oração eu não deveria estar preocupado em como resolver um problema do trabalho ou qual será o cardápio da janta desta noite. Nesse momento a vida espiritual se deve tornar primária. A preocupação com minha alma e com a glória de Deus.
Portanto, é contra o problema de desconcentração que estamos lutando nesse momento. Este é um terrível mal de nossos dias, a dificuldade de nos concentrarmos para qualquer atividade, quanto mais ainda para a oração. Para o homem moderno, a exclusão não significa apenas entrar no seu quarto sozinho. Em nossos dias o isolamento implica também em desligar o celular, computador, telefone fixo, TV, e qualquer coisa que possa nos atrapalhar nesse momento tão precioso para nossa alma.
Ora, o que temos visto aqui não exclui as orações públicas. Não é errado orarmos em certas ocasiões em público. Há vários exemplos bíblicos de irmãos orando juntos, como em Atos 4.23-31. O Senhor Jesus também orou em público, como na oração sacerdotal de João 17. Mas nesses momentos também precisamos nos excluir, não literalmente, mas mentalmente. A nossa oração, mesmo que seja pública, deve estar dirigida a Deus e não aos ouvintes. Nossa atenção é para Ele e não naquilo para o agrado dos demais presentes.

b) A percepção

O segundo ponto colocado por Jesus é este: “orarás a teu Pai”. Esta frase tão curta contém uma profundidade enorme. Não é a qualquer um que estamos orando, mas ao Pai. Precisamos perceber que estamos diante da presença do Deus Pai Todo-poderoso, criador dos céus e da terra, dono do universo e todo-soberano. Não é brincadeira. Particularmente, tenho muita dificuldade de entender aqueles que oram com um jeito todo descolado e irreverente. Eles argumentam que temos que quebrar aquele conceito da idade média de um Deus severo. Entendo a preocupação deles, mas acredito que estejam usando o método equivocado para isso. Não encontro sequer um exemplo bíblico de tal atitude por parte dos servos mais fieis a Deus e que caminharam com uma intimidade muito mais profunda do que a nossa. Pelo contrário, todos eles, mesmo tratando Deus de Pai, sempre mostraram uma profunda reverência à santidade do Santo dos santos. Portanto, precisamos entender diante de quem estamos nesse momento tão precioso. Muitas vezes, é necessário antes de começarmos a orar relaxar uns segundos em reflexão, lembrando o que estamos por fazer e diante de Quem estamos por nos apresentar.
Por outro lado, também devemos notar que oraremos “ao Pai”. Os judeus não estavam acostumados a tratar Deus com tal intimidade de maneira de chama-lo de Pai. Mas fomos adotados por meio do seu Espírito Santo, de maneira que clamamos “Aba Pai”. Esta expressão usada por Paulo em Romanos 8.15 é um termo aramaico informal para pai que transmite um sentido de intimidade. É para esse Pai que estamos orando. Consequentemente, podemos falar com Ele com sinceridade e simplicidade. Podemos ter nEle confiança e contar-lhe todas as nossas preocupações. Podemos manifestar-lhe todo o nosso amor e gratidão. Quer dizer que podemos trata-lo como a um verdadeiro pai, com todo o nosso amor e toda a nossa reverência e respeito.

c) A confiança

O último ponto que Jesus coloca é a confiança que podemos ter no Pai quando oramos a Ele: “e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará” e “o vosso Pai, sabe o de que tendes necessidade, antes que lho peçais”.  Ele nos vê e nos ouve. E ele se agrada em nos responder. A nossa confiança é esta: saber que ele está presente, que ele nos vê em secreto e que ele sabe o que precisamos antes que lhe peçamos. Ele nos ama e quer nos dar o melhor. Esta é uma grande confiança para o cristão, mesmo no meio dos sofrimentos.
Ora, para que devemos orar se ele já sabe tudo antes de que peçamos? A.W.Pink[1] coloca vários motivos para a oração diante da soberania de Deus. Esses pontos são: 1) A oração é em primeiro lugar para que Ele seja honrado, adorado e glorificado, não para os nossos pedidos; 2) A oração é para que sejamos humilhados e aprendamos a depender de Deus. É como um pai terreno que sabe o que seu filho precisa, mas espera que este o peça para que aprenda a valorozar o recebido e também para que aprenda a ser respeitoso e humilde. Os incrédulos não se agradam com a ideia de termos que depender de um Deus em todas as coisas e de termos que pedir cada coisa a um Deus como se ainda fossemos crianças. Mas o cristão tem prazer em fazê-lo, pois é nisso que descansamos, em saber que tudo recebemos dEle e que ele conhece todas as nossas necessidades. Não dependemos dos nossos próprios esforços, mas das dádivas do Pai. Isto implica no último ponto: 3) A oração é para que nos deleitemos nEle. Você já não se alegrou em ver uma oração sua respondida, uma necessidade atendida, uma benção recebida? Isso produz deleite e prazer no coração do cristão.
Então, não esqueçamos que além dessas benções que podemos receber já no fato de estarmos orando, a Palavra nos diz que “teu Pai que está em secreto te recompensará”. Deus se agrada daqueles que o buscam em secreto, longe da glória deste mundo, longe dos olhos dos demais. Ele se agrada nisso e recompensará o crente que viver uma vida de oração silenciosa e secreta diante do Pai.

Considerações finais

Após todas estas considerações práticas baseadas nas instruções de Jesus pouco nos resta para dizer. Na verdade apenas nos resta uma profunda autoavaliação sincera e nos perguntarmos: como tem sido a minha vida de oração? Tenho buscado a glória dos homens através das minhas orações? Tenho sido descuidado com minha vida de oração? Tenho comunicação com Deus em oração? Sou salvo em Cristo para poder orar a Deus e tratá-lo como Pai? A minha oração pode ser recebida diante de Deus pela obra de Cristo na cruz por mim?
Se alguma dessas perguntas tiver uma resposta negativa, considere aquilo que foi dito aqui e arrependa-se. Venha a Cristo, tome a sua cruz e siga-o. Somente nEle podemos ter acesso ao Pai e trata-lo com carinho, dizendo “Aba Pai”! Que Deus nos abençoe!


[1] A.W.Pink. “Deus é soberano”. São José dos Campos: Editora Fiel.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

A mensagem de Oséias ao povo de Deus (Pregação sobre Oséias 6.3)

Exposição sobre o livro de Oséias, baseada em Oséias 6.3. Esta mensagem foi pregada no congresso de jovens da Igreja Batista Palavra Viva de Porto Alegre. O tema do congresso foi: "Identidade Cristã" e o texto do evento foi este da pregação, Os.6.3: "Conheçamos e prossigamos em conhecer ao SENHOR". Neste contexto foi pregada a mensagem a seguir.
BBVC

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Sermão do Monte XXIV: O Crente e as Obras de Caridade (Mateus 6.2-4)


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 Capítulo XIV

O crente e as obras de caridade

Alejandro G. Frank

Introdução

No estudo anterior começamos uma nova seção do Sermão do Monte (Mateus 6) que trata sobre a prática da justiça diante de Deus e diante dos homens. Nesse estudo dizemos que Jesus apresentou um princípio sobre a relação do crente com a prática da justiça, destacando a seguinte advertência: “Guardai-vos de exercer a vossa justiça diante dos homens, com o fim de serdes vistos por eles; doutra sorte, não tereis galardão junto de vosso Pai celeste” (Mateus 6.1). Vimos que o Senhor Jesus fez uma forte advertência a seus discípulos para que estes não buscassem a glória dos homens. Ao invés disso, seus discípulos deveriam praticar a justiça de maneira tal que Deus os visse e não os homens. Eles deveriam viver para agradar a Deus e não a homens. Para serem aprovados por Deus ao invés de serem lisonjeados pelos homens. Enfim, isto significa que corremos o risco de cair no autoengano e utilizar as melhores obras de justiça – aquelas obras que aparentam provir de pessoas fieis a Deus – para sermos exaltados pelo mundo. É sobre este assunto que o Senhor Jesus ensina em todo o Capítulo 6 de Mateus de diferentes maneiras e com aplicações a diferentes aspectos da vida do ser humano.
Neste estudo consideraremos a primeira das aplicações práticas em que se desdobra o princípio geral apresentado no verso 6.1. Esta aplicação encontra-se nos versos 2 a 4:
“Quando, pois, deres esmola, não toques trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens. Em verdade vos digo que eles já receberam a recompensa. Tu, porém, ao dares a esmola, ignore a tua mão esquerda o que faz a tua mão direita; para que a tua esmola fique em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará.” (Mateus 6.2-4)
A primeira das formas em que Jesus desdobra a relação do crente com a prática da justiça está relacionada com as esmolas. Em um sentido mais genérico, podemos chamar isto como “obras de caridade” que o crente pode fazer. Este é um tema de discussão muito comum entre católicos romanos e evangélicos. Enquanto os primeiros ressaltam muito a importância deste aspecto, os últimos desde a época da Reforma Protestante têm mostrado uma forte aversão a este tipo de práticas por medo a que se confunda com méritos para alcançar a salvação. Mais adiante falaremos especificamente sobre este assunto e basta agora antecipar que nenhuma das duas posições extremas é saudável. É claro que neste texto o Senhor está considerando como positivo realizarmos obras de caridade. O problema jaz no princípio apresentado no verso 6.1, isto é, no intuito com que esta obra é praticada.
Note também que Jesus começou a desdobrar o princípio do verso 6.1 pelas obras de caridade (esmolas) e não pela oração ou o jejum, que são outras aplicações práticas que ele utilizará depois (nos versos 6.5 a 15 e 6.16 a 18 respectivamente). Por que começar por esmolas e não pela oração, por exemplo? Por acaso a oração não seria muito mais importante do que dar esmolas? Poderíamos dizer que a oração é de fato mais importante no nosso relacionamento com Deus, mas as obras de caridade são o aspecto mais visível da prática da justiça diante dos homens. As pessoas tendem a exaltar mais alguém que é um grande ofertante frente a alguém que é um orador fervoroso. Observe nas igrejas: o que chama mais a atenção geral das pessoas, um dizimista forte ou uma pessoa que ora fervorosamente? É claro que as pessoas se impressionam mais com a caridade do que com os jejuns e orações. Sempre que se toca no aspecto material este impacta mais aos olhos do ser humano. É o deus Mamom (o deus da riqueza) que ocupa um cantinho no coração de muitas pessoas. O amor aos bens materiais é uma grande tentação que o crente deve combater. Portanto, a primeira forma de sermos tentados a buscar a glória dos homens ao invés da glória de Deus é por meio das obras de caridade, das esmolas, daquilo que mostramos por meio dos nossos bens materiais. Por esse motivo, o Senhor Jesus ensina nesta seção como devemos proceder para honrarmos a Deus com nossos bens da maneira certa. É isso que vamos considerar nas seguintes seções.

As esmolas no contexto judaico da época de Jesus

Antes de considerarmos o texto em questão, vamos definir o que se entende por esmolas neste texto. O dicionário define esmolas como “o que se dá por caridade aos necessitados”. Isto significa que em um sentido limitado é uma ajuda monetária, mas que em um sentido mais amplo é qualquer tipo de ajuda que possamos oferecer aos outros. Neste sentido, o nosso próprio tempo muitas vezes é um bem muito precioso que podemos oferecer para ajuda aos outros e às vezes é até mais difícil dedicar nosso tempo do que os nossos recursos financeiros.
Na época de Jesus era muito comum dar um pedaço de pão ou dinheiro aos pobres que pediam esmolas nas ruas. Rops (p.352)[1] afirma que nos tempos de Jesus “a vida diária de Israel era  pontuada pelo clamor de suas súplicas”. Neste contexto era muito comum e necessária a obra de caridade das pessoas. O mesmo autor destaca que em tempos de peregrinações Israel se enchia de mendigos pelo fato dos peregrinos virem a Israel com um coração mais propenso para ajudar aos pobres. Este era o contexto no qual os fariseus desenvolviam sua doutrina. Eles consideravam as esmolas como frutos de justiça. Eles se baseavam em textos como os do Salmo 112.9 quando fala do homem justo: “Distribui, dá aos pobres; a sua justiça permanece para sempre, e o seu poder se exaltará em glória”. De fato, a Palavra de Deus exalta  como uma das características do homem justo as obras de caridade. O problema é que eles não enxergavam isto como uma consequência de alguém que alcançou a graça de Deus e por meio disso faz estas obras. Pelo contrário, eles criam nestas obras de caridade como obras meritórias, que permitiriam alcançar o favor de Deus. Algo muito similar ao que acontecera com a doutrina do catolicismo romano durante a idade média e diante do que reformadores como Martinho Lutero fizeram seu forte protesto pregando que a justificação era dada somente pela fé e não pelas obras. Voltando aos fariseus, Matthew Henry explica que nessa época as obras de justiça eram tão fortemente associadas às esmolas que os judeus chamavam à caixa das esmolas do templo como “caixa da justiça”. Contudo, como o mostra o próprio ensinamento de Jesus no Sermão do Monte (veja e compare os versos 5.20 e 6.1), a maior preocupação que estava por trás de pessoas como os fariseus da época quando davam suas esmolas não era nem sequer a possibilidade de alcançarem o favor de Deus por meio de tais obras. O verdadeiro intuito que estava no coração deles era serem exaltados pelos homens, serem tidos por justos e santos aos olhos dos homens. Esse era o maior orgulho que estes homens tinham e para estes foi dirigida esta mensagem. Como bem disse Jesus, “eles já tinham sua recompensa (v.6.2b)”.

Esmolas, ofertas e dízimos

Quando definimos o que se entende por esmolas temos dito que é todo tipo de ajuda, principalmente por meio dos nossos bens, que podemos dar para o próximo. Em um sentido específico este tipo de ajuda é focado em indivíduos necessitados. Porém, se enxergamos este conceito desde uma ótica mais ampla, podemos incluir também dentro dele às ofertas e dízimos que são entregues na igreja. Pode parecer estranho, mas reflita comigo: qual é o objetivo final dos dízimos e das ofertas? No Antigo Testamento encontramos que o povo de Israel tinha que dar seus dízimos por dois motivos:
(i)     O primeiro era para que o povo se lembrasse de que seus bens pertenciam ao Senhor.
(ii)    O segundo era para ajudar na sustentação do templo e daqueles que serviam no templo.
Se considerarmos o primeiro ponto, podemos notar que os dízimos não tinham um caráter apenas cerimonial, mas moral. O dízimo não buscava apenas regulamentar a vida religiosa de Israel, mas era um meio de lembrança ao povo da soberania de Deus sobre todos os bens deles. Além disso, esta era uma regra estabelecida como um mínimo de retribuição por agradecimento, mas no final das contas todos os bens do povo eram dEle e para Ele.
Por outro lado, se considerarmos o segundo ponto, podemos notar que os dízimos e ofertas, em última instância, tinham um propósito similar às esmolas, pois eram meios de ajudar e sustentar àqueles que não tinham outra coisa do que viver. Lembre que os sacerdotes não tinham bens nem herança em Israel. Deus tinha dito para os desentendes de Levi que eles ministrariam no templo e dependeriam do sustento do restante do povo. Portanto, eles dependiam do que recebiam das ofertas e dízimos do povo. Afirmo assim que dar os dízimos e as ofertas também era parte da prática da justiça da caridade, sendo uma ação moral que visava glorificar a Deus por meio da ajuda ao próximo.
Pois bem, você poderia pensar que tudo isto é apenas coisa do Antigo Testamento e da nação de Israel. Então, deixe-me prosseguir com meu argumento e consideremos os tempos de Jesus. Tudo indica nos evangelhos que o Senhor Jesus não se opunha aos dízimos e ofertas. Em Mateus 23:23 vemos que ele não se opôs aos dízimos e ofertas, mas acusou aos fariseus que este ponto era tão importante para eles que chegaram esquecer o primordial, isto é, a justiça, a misericórdia e a fé. Além disso, eles tinham esquecido a ordem certa das prioridades, pois vemos em Marcos 7 que uma das acusações de Jesus para com eles foi a seguinte:
“Pois Moisés disse: Honra a teu pai e a tua mãe; e: Quem maldisser a seu pai ou a sua mãe seja punido de morte. Vós, porém, dizeis: Se um homem disser a seu pai ou a sua mãe: Aquilo que poderias aproveitar de mim é Corbã, isto é, oferta para o Senhor, então, o dispensais de fazer qualquer coisa em favor de seu pai ou de sua mãe, invalidando a palavra de Deus pela vossa própria tradição, que vós mesmos transmitistes; e fazeis muitas outras coisas semelhantes.” (Marcos 7.11-13)
Eles usavam o dízimo e as ofertas como desculpa para não ajudar seus pais necessitados. Por que motivo? Pelo mesmo motivo considerando nesta porção do Sermão do Monte, isto é, pelo fato de quando eles davam os dízimos e as ofertas buscavam serem reconhecidos diante do povo, enquanto que ajudar aos seus pais em casa não se tornava tão visível aos olhos da sociedade da época. Além disso, eles achavam que fazer isto era mais justo e correto e que o templo era mais importante que honrar seus próprios pais. Eles tinham abordado esta prática de uma maneira legalista e interesseira, longe dos verdadeiros propósitos de Deus.
Se avançarmos um pouco mais, podemos ver que após os tempos de Jesus, durante a igreja primitiva, não aparecem indicações diretas a respeito dos dízimos. Por que? É porque tinha acabado a lei judaica abolindo os dízimos e ofertas? No meu entender não é por este aspecto um tanto negativo, mas por algo muito mais importante e positivo. É porque os apóstolos tinham entendido que “Deus ama a quem dá com alegria” (2.Coríntios 9.7). Os fieis a Cristo tinham entendido que tudo pertence a seu Senhor. Desta maneira, a igreja não falava em dízimos nem em esmolas, mas sim em ofertas aos santos e necessitados. O dinheiro que se coletava era utilizado para sustentar a obra, para o sustento de Paulo e outros missionários assim como para o sustento das igrejas mais pobres. Por exemplo, vemos em Atos 4.32-35 que os membros da igreja venderam todos seus pertences para sustentar a obra. Os filipenses (Filipenses 4.10-20) ajudaram a sustentar o apóstolo Paulo nas suas prisões. As igrejas da Macedônia foram generosas com ofertas a outras igrejas pobres e necessitadas mesmo elas sendo também pobres (2Coríntios 8.1-7) . Tal foi este exemplo que Paulo exortou aos coríntios para que estes também seguissem e imitassem aos macedônios, não por mandato, senão por gratidão (2.Coríntios 8.7-15; 9.1-5). Inclusive o próprio apóstolo Paulo trabalhava para ajudar estas igrejas e não ser oneroso para com elas (2.Coríntios 12.14). É muito claro em todos esses textos que a questão da prática da caridade por meio de esmolas, dízimos, ofertas, sustento aos ministros e todo tipo de ajuda que a igreja faz com os necessitados (primeiramente com os da própria casa, isto é, como os próprios membros das igrejas) nunca deixou de ser válido e importante (veja também textos como Tiago 2.14-17; 1 João 3.17-18).
Com tudo isto, quero dizer que este texto do Sermão do Monte é um ensinamento para não sermos avarentos, cobiçosos e desonestos, negando a importância da prática das obras de caridade e generosidade.

A crítica de Jesus aos hipócritas

Como já vimos anteriormente, o problema que Jesus coloca não é a caridade em si; o problema é quando se busca exercer a justiça diante dos homens com o fim de ser vistos por eles (Mateus 6.1). Observem como Jesus dirige neste texto sua crítica para com os hipócritas:
“Quando, pois, deres esmola, não toques trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens” (Mateus 6.2a).
A palavra hipócrita que Jesus utiliza aqui, vocês verão que se repete várias vezes nos versos subsequentes. Um hipócrita, naquela época, era uma pessoa do teatro romano que utilizava uma máscara. Portanto, não era possível ver a sua verdadeira identidade. Dai que provém a conotação de hipócrita para uma pessoa falsa, que não mostra aquilo que ela realmente é. Estes homens descritos por Jesus anunciavam publicamente seus feitos de piedade, mas tais feitos eram apenas uma máscara para esconder o que eles realmente eram no interior.
O texto também nos diz que eles tocavam trombeta para serem vistos. É claro que eles não tocavam trombeta literalmente. Isto é apenas um quadro imaginário. É uma expressão como a que utilizamos hoje “fazer alarde”. É dizer que eles faziam com que as pessoas notassem as obras de caridade que eles realizavam. Eles estavam pendentes de que a sociedade os visse fazendo isso. O mundo faz muito disto. Considere, por exemplo, o caso de muitos famosos do mundo do espetáculo. Eles fazem anúncios de doações e ajudas aos necessitados. Aparecem publicamente fazendo todo tipo de caridade. Porém, quando observamos suas vidas privadas, como por exemplo, a maneira que agem com suas respectivas esposas ou maridos e com seus filhos, quebrando matrimônios por meio do adultério, deixando de dar a atenção necessária à família, inclusive envolvidos em casos de corrupção, intrigas, fofocas etc., vemos uma grande incoerência de suas vidas. Pelo menos a meu modo de ver isto é um bom exemplo de pessoas que fazem suas caridades com o fim de serem vistos pelos homens.
Contudo, existem formas mais sutis de se tocar trombeta para que as pessoas notem os nossos feitos piedosos. Deixem-me lhes dar alguns exemplos. Primeiro, como disse Lloyd-Jones, uma forma muito sutil de fazermos isto é quando alugamos um mensageiro. Isto é, quando contratamos alguém para nos exaltar em público. Como pode acontecer isto? Por exemplo quando contamos algum dos nossos feitos para uma pessoa que já sabemos antecipadamente que o divulgará para outros. Podemos não ser nós os que contamos que fizemos uma determinada oferta ou dízimo ou ajuda para alguém, mas podemos deixar que alguém o veja e seja essa pessoa que o divulgue. Em segundo lugar, outra forma sutil é quando deixamos vazar a informação intencionalmente. Já conheceram alguma vez essas pessoas que no meio da conversa puxam algum dos seus feitos de uma maneira sutil. Elas não falam aberta e diretamente sobre o que fizeram, mas frequentemente no meio das conversas introduzem tais assuntos como se fossem normais ao assunto em pauta. Esse tipo de pessoas usam argumentos como ser um simples exemplo ilustrativo do assunto em pauta, ou ser uma lembrança sobre um acontecimento similar, ou coisas desse tipo. Mas os exemplos ou lembranças que elas introduzem são aqueles que as exaltam a elas mesmas, destacando os seus feitos. Uma terceira forma sutil é através das orações de agradecimento públicas. Não sou contra orar e agradecer em público, mas muitas vezes isto pode ser um meio pelo qual nos autoenganamos, utilizando como pretexto para compartilhar os nossos feitos. Não sou juiz de ninguém e cada um tem que conhecer o seu coração e avalia-o à luz das Escrituras. Confesso que eu particularmente prefiro reservar algumas coisas da gratidão pública pois sei que pode fazer muito mal a mim mesmo. Se o testemunho do que fazemos ofuscar a glória de Cristo, certamente estamos tocando trombeta diante dos homens, para que eles nos exaltem.
Um bom exemplo bíblico para aquilo que acabamos de dizer podemos encontrar em Atos 4:3- 5:11. Vemos o contraste entre duas atitudes na igreja cristã. Por um lado temos o exemplo de Bernabé. Atos 4.36-37 diz que ele vendeu um campo e ofertou todo o dinheiro da venda para ajudar aos necessitados da igreja. Mas, por outro lado, houve um casal invejoso, que via no ato de Bernabé um meio para ser exaltado na igreja e quiseram imitá-lo utilizando o engano. Atos 5.1-11 conta que este casal, Ananias e Safira, mentiram aos apóstolos, pois ofertaram parte da sua herança, mas disseram que tinham dado tudo o que tinham. Eles não precisavam fazer isto, eles podiam ficar com todo seu dinheiro. Mas o que Deus julgou neles foi a hipocrisia com que agiram para serem reconhecidos diante da igreja como pessoas piedosas. Eles queriam ser glorificado pelos homens e talvez tenham recebido sua recompensa.
Ainda, o Senhor Jesus afirma sobre este tipo de pessoas o seguinte: “Em verdade vos digo que eles já receberam a recompensa” (Mateus 62b). Esta é uma triste afirmação sobre o estado de tais almas. Elas já receberam a recompensa daquilo que buscavam, quando buscam o reconhecimento e a glória dos homens eles já receberam sua recompensa: algo vazio, efemero, temporário. Onde estão todas as celebridades que já passaram pela TV e que nunca mais apareceram? Onde está a glória de grandes impérios e reinos que já não existem? Onde ficaram os elogios que recebemos no ano passado? Todos eles estão apenas e como máximo nos registros da história, mas passaram para o esquecimento. O mundo segue avançando, a eternidade se aproxima e nada mais resta para tais homens. Note que o Senhor disse “já receberam”, isto dá uma clara conotação de que nada mais resta para estas pessoas receberem, tudo o que eles buscavam já o têm conseguido, nada mais terão para receber na eternidade, apenas vergonha eterna.

O ensino positivo – como proceder corretamente nas obras de caridade

Até o momento vimos os aspectos negativos deste ensinamento. Porém, a doutrina cristã nunca é negativista no sentido de ser apenas uma reação às condutas ou apenas condenatória para com elas. Temos muito por ensinar e aprender para vivermos uma vida que realmente glorifica a Deus. Todo o ensino do Sermão do Monte tem esse propósito: aprendermos a viver a religião da maneira certa, da maneira que agrada e glorifica a Deus. Portanto, vemos que Jesus acrescenta o sentido correto das obras de caridade da seguinte maneira:
“Tu, porém, ao dares a esmola, ignore a tua mão esquerda o que faz a tua mão direita; para que a tua esmola fique em secreto...” (Mateus 6.3-4a)
O Senhor diz, “ao dares a esmola”, portanto Jesus não via as obras de caridade como algo ruim ou mau. Pelo contrário, desde Jesus até o último dos apóstolos sempre se preocuparam com os pobres e necessitados da família da fé e Tiago se preocupa bastante com esta questão na sua epístola. Paulo disse que Deus ama ao que dá com alegria. O ato de dar com generosidade é fruto do amor de Deus, pois ele mesmo nos dá sua graça de maneira abundante e generosamente. Dele é que deveríamos aprender como dar por amor. Mas há uma forma correta de dar e esta consiste em que: “ignore a tua mão esquerda o que faz a tua mão direita”. Esta expressão acarreta em dois significados: 
a)      Significa que nem nós mesmos devemos saber. Se a nossa mão esquerda não sabe o que faz a direita, então os nossos membros do corpo não devem saber o que os outros membros dele fazem (em um sentido figurado, claro). Como acontece isto de maneira prática? Uma forma é que não deveríamos andar com um caderno imaginário de boas obras que realizamos. Já passaram por uma situação em que depois de terem feito um favor ou uma ajuda para alguém e esperando serem tratados da mesma maneira, isto não acontece? Qual é a reação? É comparar nossas obras com as deles? É nos sentirmos melhores do que eles? Isto seria uma forma de “registrar” boas obras na nossa memória. Há pessoas nas igrejas que acham que têm mais direito por serem melhores dizimistas, e outros acham que seus pecados são justificados por causa das obras de caridade que realizam. Estas são formas em que a mão esquerda sabe o que a mão direita faz.  Portanto, este ponto nos leva à atitude de ajudar a alguém e logo esquecer e estar preparado novamente para fazê-lo, independentemente de qualquer circunstância. Em Mateus 25.34-40 vemos um bom exemplo disto:
“então, dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino que vos está preparado desde a fundação do mundo. Porque tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era forasteiro, e me hospedastes; estava nu, e me vestistes; enfermo, e me visitastes; preso, e fostes ver-me. Então, perguntarão os justos: Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer? Ou com sede e te demos de beber? E quando te vimos forasteiro e te hospedamos? Ou nu e te vestimos? E quando te vimos enfermo ou preso e te fomos visitar? O Rei, respondendo, lhes dirá: Em verdade vos afirmo que, sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes.”
Por que estas pessoas não souberam identificar as obras às quais Jesus se referia? Primeiro porque eles não levavam um registro desses feitos. Eles não consideravam tais atos como dignos para serem chamados diante do seu Senhor. Eles não souberam identificar nisso uma obra digna para Cristo. Eles apenas o fizeram porque sabiam que era o seu dever. Assim também nós devemos pensar e agir. Há pessoas que realizam alguma obra e ficam satisfeitas. Nós, porém, deveríamos seguir a instrução de Jesus: “Assim também vós, depois de haverdes feito quanto vos foi ordenado, dizei: Somos servos inúteis, porque fizemos apenas o que devíamos fazer.” (Lucas 17.10). Diante do Senhor devemos nos considerar servos inúteis, hoje, para que um dia Ele nos chame dizendo “servo bom e fiel” (Mateus 25.23). 
b)     Por outro lado, esta expressão ignore a tua mão esquerda o que faz a tua mão direita” significa também que devemos fazer o possível para que ninguém saiba a obra que estamos fazendo. Se nem a nossa mão esquerda deve saber o que a direita faz, quanto menos a mão e o olho do próximo!  Se nem nós mesmos deveríamos nos lembrar das obras de justiça que fazemos, quanto menos as outras pessoas! A nossa preocupação deve estar em que Deus o veja e não os homens. Ora isto não significa que cada vez que alguém souber algum feito nosso já é pecado. O pecado jaz no desejo que podemos ter em nosso coração dos outros saberem aquilo que nós fazemos de bom, aquilo que nós fazemos como obra de caridade. Então, tudo começa pela intensão que está no nosso coração e é por isso que é o nosso coração o que nós mesmos devemos colocar sob observação diante das Escrituras.

O resultado da atitude certa

Finalmente, temos que lembrar que a Palavra do Senhor não vem apenas com advertência, mas também com promessas: “para que a tua esmola fique em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará.” (Mateus 6.2-4). Nós podemos esquecer, podemos ocultar, podemos passar despercebidos com a nossa vida religiosa, com a nossa piedade e caridade. Porém, não passaremos despercebidos diante dos olhos de Deus. Ele se alegra com os humildes e certamente os recompensará. Tudo está escrito nos livros celestiais, todas as obras, todos os feitos e até todas as nossas lágrimas derramadas não são em vão. Veja textos como Apocalipse 20.11-15 ou como Salmos 56.8. Isso é um grande consolo para o cristão. Nós, como crentes, não confiamos em nós mesmos e sabemos que a nossa própria justiça nada vale diante de Deus para sermos salvos e alcançar sua graça. Sabemos que dependemos totalmente da obra de Cristo na cruz e que somente a fé nele é o que nos reconcilia com Deus e nos justifica de maneira a termos esperança no juízo final. Por meio da obra de Cristo podemos ter a certeza de que Deus se agrada da vida de pecadores arrependidos que buscam dia a dia segui-lo, servi-lo, adorá-lo e glorifica-lo. E as promessas não param ai, pois a Bíblia nos promete que teremos o auxílio divino, por meio do Espírito Santo, para podermos viver em santidade. Não estamos sós, Deus é conosco.
Portanto, uma pergunta final cabe a você mesmo se responder: se você se considera já crente, seguidor de Cristo, você tem buscado a glória de Deus ou dos homens? Lembre, portanto, daquilo que consideramos neste estudo. Por outro lado, se você não for ainda cristão, a Bíblia diz claramente que até hoje você nunca viveu para a glória de Deus e sim para si mesmo e para os olhos da sociedade. Portanto, volte-se, arrependa-se dos seus pecados e venha a Cristo que de maneira nenhuma ele o rejeitará!
Soli Deo Gloria!





[1] Henri Daniel-Rops. A vida diária nos tempos de Jesus. São Paulo: Edições Vida Nova.